Duas grandes damas das artes brasileiras encontram-se reunidas no mesmo prédio do Masp, em mostras separadas: uma pintora (Tarsila Popular) e uma arquiteta (Lina Bo Bardi: Habitat).
Lina e Tarsila
por Walnice Nogueira Galvão
Duas grandes damas das artes brasileiras encontram-se reunidas no mesmo prédio do Masp, em mostras separadas: uma pintora (Tarsila Popular) e uma arquiteta (Lina Bo Bardi: Habitat). Ambas são bem conhecidas do público paulistano, pois desenvolveram suas carreiras em São Paulo. E poucos poderiam disputar-lhes a palma, nesse altíssimo nível de realizações em que se colocam.Tarsila dispensa apresentação enquanto musa suprema e pintora do Modernismo. A mostra privilegia a vertente popular de sua obra e sobretudo sua menos conhecida porém rica produção tardia. Tardia apenas no sentido de que é posterior a sua grande fase modernista e a seus três principais trabalhos tremendamente originais que são: A Negra, Abaporu e Antropofagia.
Essa fase que a exposição explora não é, como poderia parecer aos apressados, mais ingênua ou primitiva ou naîf – e não porque carregue em azul celeste e cor-de-rosa, nem porque escolha temas singelos. Não: seria acusar retrocesso numa pintora de tal sofisticação, com formação em Paris nos ateliês de Fernand Léger e André Lhote. Ao contrário, avançando em sua arte, Tarsila elabora motivos folclóricos e de arte popular à-vontade, tematizando a religiosidade e o carnaval, evocando a favela, o subúrbio, o meio rural, o interior. Nessa fase há laivos de um viés surrealista, imergindo no inconsciente, na infância vivida em fazenda, no lendário e no mitológico, nos tesouros negros e indígenas. Mas a tudo isso já acenara anteriormente em sua pintura, bem como nas majestosas figuras das três telas supracitadas.
Tarsila participou em posição central no Movimento Antropófago. Além das pinturas de maior porte, esboçava croquis minimalistas, notáveis pela depuração dos traços, e que podemos apreciar nas vinhetas dos livros de poesia de Oswald de Andrade. Na Revista de Antropofagia aparece em posição de destaque um desenho seu reproduzindo o Abaporu, o comedor de gente.
Dela ficaram em São Paulo obras que são contribuições definitivas à fisionomia da cidade, como o prédio do Masp na Avenida Paulista, com o arrojo do vão livre que à época era um dos maiores do mundo e hoje é emblema da capital. Também foi a arquiteta do Sesc Pompéia, um modelo do gênero, servindo às expectativas de tornar-se um grande centro cultural. Essa foi uma das primeiras casas do Sesc, constituindo-se em farol e carro-chefe, à qual viriam agregar-se muitas outras, para nosso usufruto. Acrescente-se a Casa de Vidro, sua residência no Morumbi, por ela desenhada e edificada. E o Teatro Oficina, verdadeiro milagre de aproveitamento de um estreito lote urbano em zona antiga já apinhada de construções. Está completo o sinete de Lina na cidade. Ainda criaria a prestigiosa revista Habitat, que por muito tempo daria as cartas na decoração, no mobiliário e no design.
A exposição no Masp fala disso e fala de muitas coisas mais. Divide-se em três módulos: “O habitat de Lina Bo Bardi”, “Da Casa de Vidro à cabana” e “Repensando o museu”, todos eles contemplando diferentes facetas da obra da artista. Sem esquecer seu fecundo período de cinco anos na Bahia, onde restaurou o Solar do Unhão, no qual implantou o Museu de Arte Moderna e iniciou um Museu de Arte Popular, que não vingaria. Afora isso, criou em Salvador um círculo de fermentação artística e cultural a seu redor: Glauber Rocha foi um de seus discípulos. A experiência baiana de Lina seria amputada pelo golpe de 1964, que a destituiu de seus cargos. Atenta às lições de Gramsci, e recolhendo Brasil afora o artesanato mais característico e o mais inusitado, Lina inauguraria o Masp como curadora da exposição “A mão do povo brasileiro”, em 1969 (reciclada em 2016 – ver GGN, 27.10.2016).
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